segunda-feira, 25 de março de 2019

Concessão das ferrovias: o que dizem e a realidade

Trem série 9500 da CPTM: A empresa adquiriu 219 composições desde 1998.
Foto: Victor Santos (autor).
Desde os anos 1990 muitas das estradas de ferro que eram operadas e mantidas pela União ou pelos próprios Estados foram amplamente concedidas a empresas interessadas em explorar o transporte ferroviário. Na época, o programa de desestatização das ferrovias previa que as empresas ou grupos que assumiriam as operações do transporte férreo manteriam as operações dos traçados até então existentes, além de investir na manutenção e modernização da malha. Porém o que realmente aconteceu foi a rápida desativação de trechos considerados de baixo movimento e lucratividade, e o fim do transporte de passageiros em quase toda a malha, além da questão da falta de investimento por parte das operadoras na expansão das linhas férreas.
Agora, em 2019, a gestão estadual de São Paulo quer repetir o mesmo processo de conceder ferrovias e outras entidades públicas. Entenda o porquê essa série de concessões que o Governo Paulista quer realizar nessa gestão pode não ser a melhor opção para os passageiros e para o Estado como um todo.

Reflexos do passado
Os paulistas sentem até hoje os problemas que foram gerados pelas concessões mal sucedida das ferrovias no final dos anos 1990. As empresas vencedoras dos processos de concessão não se interessaram pelo transporte de passageiros, até então muito precário pela falta de uma boa gestão por parte dos governos estaduais e federais. O resultado foi a ampla desativação dos trens de longo percurso de passageiros, deixando muitas cidades sem um transporte mais acessível.
O investimento desenfreado no transporte rodoviário iniciado nos anos 1950 e que continuou durante as décadas seguintes, gerou também problemas a ferrovia, sucateando a mesma e criando na cabeça das pessoas que se concedesse a ferrovia a melhoria seria imediata.

O mais interessante é que a falta de um contrato mais específico e incentivador para a concessão fez com que as concessionárias retirassem o transporte de passageiros, priorizando o transporte de cargas que é muito mais lucrativo e muito mais barato em custos de operação se comparados com os custos para se manter uma ferrovia com transporte de passageiros. Mesmo em rotas muito movimentadas como São Paulo ao Rio de Janeiro, São Paulo à Sorocaba, São Paulo à Campinas, e São Paulo à Santos, o transporte férreo entre estas cidades havia se deteriorado com a péssima gestão dos governos anteriores a concessão dos trechos.
Hoje, as rotas citadas ainda possuem a operação de trens de carga, mas o potencial que haveria no transporte de passageiros nos trechos foi completamente perdido, obrigando os passageiros utilizarem o transporte rodoviário (automóvel próprio ou transporte por ônibus), tornando as rodovias caóticas, perigosas e saturadas.
O recém eleito governador de São Paulo, João Dória (PSDB-SP) prometeu que em sua gestão haveria a volta dos trens regionais através de parceiras com o setor privado.
Ao que tudo indica, o governo estadual ficaria encarregado de construir as vias para os trens enquanto a concessionária exploraria o trecho, o famoso "o Estado constrói e a empresa apenas opera".
Locomotiva da extinta FEPASA abandonada em Jundiaí.
Foto: Créditos aos autores na foto.
As lições aprendidas com a história dos transportes ferroviários no Brasil, que são temas de seminários e estudos até os dias atuais, parece não chegar aos olhos da "Cúpula do Estado", que faz vista grossa para problemas de fácil resolução no sistema férreo. O sucateamento da CPTM - Companhia Paulista de Trens Metropolitanos ao longo dos anos em que opera as linhas de transportes metropolitanos na Grande São Paulo geraram a péssima reputação da companhia diante dos seus usuários. Com a péssima reputação gerada através de falhas constantes e a falta de investimentos pesados no sistema, fica mais "fácil" defender a tese da concessão da CPTM em favor das melhorias, enxugamento da máquina pública, e expansão, o que de fato nunca foi provado que a concessão resultaria na melhoria prometida, tendo em vista a péssima experiência dos cariocas com a Supervia.

Supervia: única experiência na concessão dos trens metropolitanos no país
O Metrópole SP já fez uma matéria falando problemas e questões da SuperVia (para acessar, clique aqui), questões que mesmo após 20 anos de concessão da linhas e ramais do sistema carioca, ainda existem problemas sérios de operação, manutenção, conservação da infraestrutura e a própria imagem da empresa. Existem problemas, inclusive, que a própria estatal paulista, a CPTM, conseguiu resolver, como é o caso do número de passageiros transportados, que dobrou desde que assumiu a rede, e a modernização de estações e vias, problemas parcialmente resolvidos antes mesmo de completar 20 anos em operação.
É muito difícil encontrar algum passageiro da SuperVia contente com a atual situação da empresa, que atualmente passa por uma grande mudança administrativa com a Odebrecht deixando o controle acionário da companhia para um consórcio japonês liderado pela Mitsui, que antes mesmo já havia ações na empresa. A imagem da empresa ao público está tão desgastada que consegue superar a reputação negativa que a CPTM tem perante aos seus usuários, mesmo sendo uma estatal.
Trens da Supervia estacionados na estação Central do Brasil:
Operadora ainda possui problemas operacionais após 20 anos de concessão.
Foto: Victor Santos (autor).
Em todo o país, a SuperVia é o único caso de concessão de uma ferrovia de transporte de passageiros em uma região metropolitana, com o modelo totalmente fora do que seria o ideal na concepção da saída do governo estadual no investimento no transporte. Mesmo concedida, o Governo Estadual do Rio de Janeiro ainda auxiliava na aquisição de trens e modernização de estações, investindo na empresa que não pertence ao estado, embora preste um serviço essencial à população. O modelo de concessão seguindo ainda é ruim para o Estado, onde o mesmo continua investindo inclusive em possíveis expansões, oposto ao seguido em concessões de outros sistemas no mundo à fora como no Japão.
Sendo ela o único caso de concessão desse tipo no Brasil, é necessário entender que a SuperVia fez pouco em quase 20 anos de operação, o que justificaria a reprovação da concessão da CPTM que, apesar dos problemas, superou diversos outros problemas que a carioca SuperVia demorou muito para resolver.

Por mais que a estatal paulista esteja sujeita a interesses políticos, verbas do Governo Estadual, e problemas relacionados, suas operações que transportam milhões de passageiros todos os dias superam as expectativas em comparação com a concessionária carioca. Portanto, o Governo Paulista deveria melhor avaliar se conceder a CPTM à iniciativa privada seria realmente a melhor solução para a resolução dos problemas, ao invés de investir melhor nos quesitos operação e administração.

Exemplos de concessões das linhas metroviárias em São Paulo
Atualmente existem duas linhas de metrô que foram concedidas à iniciativa privada, a linha 4 Amarela, entre Luz e São Paulo-Morumbi, e a linha 5 Lilás, entre Chácara Klabin e Capão Redondo, onde em ambos os casos foi o GESP (Governo do Estado de São Paulo) que investiu em projetos, obras civis e aquisição de equipamentos e frota, deixando a operação por parte da concessionária. A linha 4 Amarela foi a primeira linha de metrô do Brasil feita com a PPP (Parceria Público-Privada), onde o governo investiria na construção, e a concessionária na operação e manutenção. O contrato previa, entre muitas coisas, que a linha tivesse prioridade no eixo de operação, ou seja, que não existisse nenhum outro modal entrando em concorrência. Exemplo disso é que aos poucos, linhas intermunicipais e municipais de ônibus vão sendo seccionadas nas estações terminais da linha amarela, forçando a transferência para o metrô.

Em 2018, o GESP fez mais uma concessão de uma linha de metrô, dessa vez uma que já estava em operação: a linha 5 Lilás, até então pertencia ao Metrô-SP e estava em amplo ritmo de expansão rumo a estação Chácara Klabin. A nova administração passou a ser pela Via Mobilidade, com participações do Grupo CCR e do Ruas Invest (do mesmo grupo que administra boa parte das linhas municipais de São Paulo). Ainda em 2018, após anos de atraso, a linha finalmente passou a se integrar com outras duas linhas de metrô do sistema através das estações Santa Cruz (linha 1 Azul) e Chácara Klabin (linha 2 Verde). A questão que mais foi levantada era o fato da iniciativa privada não ter se interessado pela linha antes do final das obras de expansão, deixando o Metrô terminar todas as obras civis para então se interessar apenas pela operação, que é muito mais barato e menos complexo.
Os altos investimentos em obras, aquisição da frota e equipamentos resultou em mais défit ao Estado, que terá que arcar com os custos de financiamentos, dívidas e problemas relacionados, enquanto que a Via Mobilidade não precisará investir em obras e compra de equipamentos, sobretudo, não terá que investir em frota pois o Metrô adquiriu 26 novos trens fabricados pela CAF para a operação da linha quando finalmente finalizasse as obras.
"Tatuzão" que escavaria os túneis da Linha 6 Laranja:
Consórcio teve problemas e obras seguem paradas.
Foto: retirado da internet, crédito aos autores.
Em poucas palavras, a concessão dessas duas linhas de metrô não resultou na melhora do sistema como um todo, uma vez que mesmo concedidas, o governo ainda investe nas linhas e inclusive para manter a saúde financeira das concessionárias, as ressarcindo quando necessário. Outro fator agravante é que por ser uma concessionária e buscar a maximização dos lucros, dificilmente haverá grandes investimentos em ampliações e modificações operacionais.
Se a concessão é realmente boa para o Estado, então por que o mesmo ainda continua investindo nas linhas 4 e 5 do Metrô mesmo após concedidas? A concessão de linhas metroviárias foi tão vantajosa que a linha 6 Laranja, que seria totalmente construída e operada pelo Consórcio Move SP, foi adiada devido a uma das empresas participantes estar envolvida em escândalos de corrupção.
Quando se fala em conceder linhas metroviárias é necessário avaliar os casos atuais e anteriores de concessões e estudar o quanto isso pode ser ou não benéfico para o Estado. As concessões feitas até os dias atuais ainda não chegaram na realidade tão sonhada pela gestão pública, que constantemente precisa fazer repasses as concessionárias que não atingem o lucro esperado no transporte de passageiros.

As concessões no passado, e as concessões hoje em dia
Em 16 de fevereiro de 1867 era inaugurado a uma estrada de ferro que tornou-se tão grande que mesmo após 150 anos ainda é relembrada como uma das mais pioneiras e fundamentais estradas de ferro do país. A estrada de ferro entre Santos e Jundiaí foi um marco histórico para o Estado de São Paulo, transformando as cidades ao longo dos seus trilhos, e o que seria da capital paulistana sem o desenvolvimento que a "The São Paulo Railway Limited" trouxe com suas composições oriundas do Porto de Santos em direção ao interior?
O então conhecido como Barão de Mauá, Evangelista de Souza, se uniu com investidores ingleses para obter a concessão do Governo da Província para construir uma estrada de ferro que ligasse o Porto de Santos à Jundiaí, de onde boa parte da produção cafeeira chegava oriunda de regiões mais afastadas. Até a inauguração da ferrovia, o transporte da produção de café no Estado era feito através de tropas de mulas, o que gerava custos muito altos, tempos desperdiçados no trajeto, onerando muito no preço do frete. Com a inauguração da primeira ferrovia em solo paulista, foi possível aumentar a capacidade do transporte de cargas, o que gerou desenvolvimento econômico por onde a ferrovia passava e, sem grandes investimentos oriundos do setor público, trouxe a maravilha do transporte férreo à São Paulo.
Devido a essa concessão feita pelo Governo Paulista, a ferrovia pôde surgir sem que o Estado precisasse realizar as obras, adquirir material e muito menos retirar dinheiro do caixa público. A concessão foi entregue a São Paulo Railway, fundada sete anos antes da inauguração da ferrovia, para que seus próprios recursos fossem usados para realizar as inimagináveis obras através da Serra do Mar. Segundo conta a história, escrita no incrível livro "Memórias de uma Inglesa - The Sao Paulo Railway" de Paulo Augusto Mendes e Moyses Lavander Junior, o Governo teve apenas que incentivar os investidores para que a companhia realmente fosse fundada e as obras começassem com isenções fiscais, taxas reduzidas e garantias, mas não investindo monetariamente na empresa e nas obras.
Locomotiva da SPR por volta dos anos 1930.
Foto: Créditos aos autores, fonte.
A visão que se tinha das ferrovias era somente uma: transportar o máximo de produtos e passageiros com investimentos próprios em novas tecnologias. Hoje, 150 anos depois, a visão das novas concessionárias que administram ferrovias de passageiros parece mudar de acordo com sua necessidade. A prova disso são as últimas duas concessões de linhas metroviárias: a Linha 5 Lilás e a Linha 15 Prata (monotrilho).
A CCR, administradora das linhas 4 e 5, recentemente venceu a concorrência pela concessão da Linha 15 Prata que, após diversos problemas, liga as estações Vila Prudente e Vila União, após bilhões de reais investidos pelo Governo Estadual em quase 10 anos de obras. Somente agora, com as obras do trecho restante até São Mateus paradas e em vias de voltar, é que a empresa se interessou pela operação da linha, somente a operação uma vez que as obras do trecho entre Vila União e São Mateus ainda serão tocadas pelo Metrô-SP.

Vale ressaltar que em nenhum dos casos de concessões das linhas 4, 5 e 15, a concessionária não investiu em frota, equipamentos, obras de expansão ou melhorias, e que o estranho caso da licitação para a concessão da linha 15 Prata, onde não houve nenhuma outra empresa interessada na linha, o que somente endossa a preferência do atual Governo Estadual em manter um mercado restrito de concessões a uma empresa que já obtém concessões de rodovias e linhas de metrô.
As concessões do passado, onde o governo apenas autorizava uma empresa ou um grupo de empresários à construir uma linha férrea, parecem desaparecer da história quando os interesses privados se sobressaem as questões como expansão da malha metroferroviária. Será que o benefício do Estado construir as ferrovias e conceder as empresas o direito de explora-las é tanto ao ponto de ignorar o tamanho do investimento? Não parece soar estranho o fato das concessionárias retirar qualquer chance de investimentos altos em expansão ou modernização da rede, sempre ignorando diversos fatos históricos? Apenas avaliem o fato do Metro Rio, concedido à iniciativa privada há quase 20 anos e nunca ter investido em obras de expansão na capital carioca.

Existe concessão de uma ferrovia que seja perfeita?
Talvez não exista um tipo de concessão que seja 100% à prova dos interesses políticos ou privados, ou então que seja totalmente benéfica aos passageiros ou ao Estado, mas existem exemplos na própria história e em outros países. Todas as grandes estradas de ferro construídas no Brasil foram fruto de um interesse de empresários que visavam seus lucros com o transporte sobre trilhos como foi o caso da São Paulo Railway ou da Estrada de Ferro Sorocabana (fundada em 1875).
Considerando o cenário atual do Brasil, e as expectativas para o futuro, uma concessão ideal levaria em conta desde a parte de projeção da malha, até a operação e possíveis ampliações da rede, deixando com que o Estado tenha o poder apenas de fiscalizador dos serviços e da concessão. Liberando o caixa público dos altos custos de implantação de uma ferrovia, haveria investimentos em outro setores essenciais.
Composição da concessionária MRS operando no Vale do Paraíba.
Foto: Victor Santos (autor).
Na possível retomada dos trens intercidades que o atual governador de São Paulo, João Dória, a Parceria Público-Privada poderia ser aperfeiçoada com a total responsabilidade da concessionária em projetar, construir e operar as linhas de trens regionais, o que libera a responsabilidade do Governo Estadual em construir toda a infraestrutura e material rodante e posteriormente entregar a preços muito abaixo do investido, como foi o caso das linhas 4, 5 e 15. Os bilhões investidos nas linhas metroviárias foram totalmente ignorados, causando um imenso défit aos cofres públicos, além do suposto benefício as concessionárias, como é o que transparece nas concessionárias do Metro-RJ e SuperVia.
O que nos resta é esperar que surja uma "luz" técnica dentro da alta cúpula governamental para que as novas concessões que estão por vir sejam feitas baseadas em fatos, dados e estudos, não tão somente por mero interesse em destrinchar as estatais em favor de um "Estado menor".

Texto e revisão: Victor Santos.