terça-feira, 29 de setembro de 2020

Caminhos perdidos - Trem metropolitano em Mairinque


TUE Toshiba na estação de Mairinque, interior de São Paulo.
Foto: Coaraci Camargo.
Fonte: Estações Ferroviárias 
Atualmente, muito se comenta sobre o retorno dos trens regionais no Estado de São Paulo, onde linhas férreas ligavam a capital a diversas cidades do interior do Estado e até mesmo para outros Estados. Dentre elas, havia a ligação férrea entre São Paulo e Sorocaba, linha original da antiga Estrada de Ferro Sorocabana. Mas após alguns anos, boa parte da linha foi utilizada como transporte metropolitano entre São Paulo e Mairinque passado por várias cidades. 
Como será que está o trecho do antigo trem metropolitano de Mairinque e ainda seria viável retornar com as operações pelo mesmo caminho? Saberemos hoje.

Em 10 de julho de 1875, era inaugurada a linha São Paulo - Sorocaba pela então Estrada de Ferro Sorocabana, uma companhia ferroviária fundada por Luís Mateus Maylsaky. O objetivo da linha transportar toda a produção de algodão desde a região de Sorocaba até a capital paulista. 
A linha foi projetada com bitola estreita, de 1.000 mm, ou 1,00 m, diferente da utilizada pela Sao Paulo Railway Company, que projetou sua linha Santos à Jundiaí com bitola larga (1.600mm). 
A linha da Sorocabana era conectada com a linha da Sao Paulo Railway, o que permitia enviar a produção até o Porto de Santos, pois as duas linhas percorriam paralelamente entre a Lapa e o Centro de São Paulo.
A linha acabou sendo importante para a formação das cidades à Oeste do Estado de São Paulo, onde a Linha Tronco da companhia era expandida, chegando ao extremo em 1922 em Presidente Epitácio, além de diversos ramais construídos. 
Após muitos anos de problemas financeiros, trocas de administração entre a gestão pública e privada, a Estrada de Ferro Sorocabana acabou se unindo a malha da Ferrovia Paulista Sociedade Anônima (ou Fepasa) em 1971. 
Locomotiva da EFS chegando em Júlio Prestes em 1930, na época em construção
do prédio atual. 
Foto: autor desconhecido.
Fonte: Estações Ferroviárias.
Com a grande industrialização de São Paulo e seu rápido crescimento, tornou-se comum que os habitantes das cidades ao redor da capital se deslocassem para o centro de São Paulo, tornando-se necessário a criação dos trens urbanos para essas funções. As viagens entre São Paulo e o interior paulista continuaria, mas aos poucos, a demanda para essas viagens foi caindo, em contrapartida das viagens dos trens urbanos que cresceram muito ao longo dos anos.
Em 1957, a Sorocabana recebeu a primeira unidade de uma encomenda de 30 trens japoneses TUE Toshiba (posteriormente série 4800 da CPTM), que foram projetados para essa demanda de passageiros na região metropolitana. Inicialmente operavam tanto em percursos dentro da região metropolitana como em ligação com as cidades do interior. 
Porém, um novo crescimento na demanda entre 1960 e 1970 acabou prejudicando a operação dessa série de trens, uma vez que eram trens estreitos e com uma capacidade mais baixa do que era necessário para a demanda. Até aquele momento, a Sorocabana possuía dois ramais de trens urbanos: a Linha Tronco (depois Linha Oeste da Fepasa) e o Ramal Jurubatuba (depois Linha Sul da Fepasa).
Estação de Itapevi em 2002, já na fase da CPTM, à esquerda, o TUE Toshiba,
e à direita, o TUE 5000 "Fepasão".
Estação era ponto de transferência entre os trens de bitola larga (Itapevi - Júlio Prestes)
e os trens de bitola estreita (Itapevi - Amador Bueno).
Foto: Ricardo Koracsony.
Fonte: Estações Ferroviárias
Com a chegada da Fepasa, a companhia reconstruiu o trecho principal da Linha Oeste, trocando a bitola de estreita para mista (estreita de 1.000 mm e larga de 1.600 mm) para possibilitar a operação de trens mais largos e maiores que os Toshiba. Em 25 de janeiro de 1979, a Fepasa apresentou a nova ligação com novas estações, trens maiores e mais novos (a série 5000), e uma nova sinalização.
Os trens Toshiba, que estavam em um processo de abandono por não haver mais demanda para eles, acabaram sendo usados na ligação entre Itapevi e Mairinque, que virou a Extensão Operacional da Linha Oeste, embora também fossem brevemente usados para as viagens regionais (até onde havia eletrificação da linha).
Para isso, foram feitas reformas entre 1985 e 1987 nas composições que iriam operar no trecho, rendendo o nome "Trem Rio Claro" pelo fato da reforma dessa série ter sido feita nas oficinas de Rio Claro da Fepasa. Posteriormente, estes trens operaram também na Extensão Operacional da Linha C da CPTM (1992 - 2001), e no TIM - Trem Intra Metropolitano entre Santos e São Vicente (1992 - 1998). Observação: Veja mais sobre o TIM aqui no blog mesmo. Acesse: "Por que a CPTM chegou a operar em Santos?".
Outra questão foram as paradas, que precisavam ser readaptadas para esses trens, isso de forma provisória e bem irregular.
Como a Fepasa nunca teve planos de reconstruir o trecho restante desde Itapevi até Mairinque, isso claro associado ao fato do abandono do transporte ferroviário pelas gestões públicas, a linha sempre foi operada de forma bem irregular e com baixa capacidade. Nesse percurso, compartilhado com os trens de carga da companhia, a linha não era totalmente duplicada e possuía muitas curvas e passagens em nível com a rua. A Fepasa reconstruiu algumas estações entre Itapevi e Mairinque, mas a maioria ainda eram estruturas antigas e precárias.
Estação de Amador Bueno, reconstruída em 1985 para atender aos
trens metropolitanos. Contraste com as paradas após
Amador Bueno.
Foto: Auto desconhecido.
Fonte: Estações Ferroviárias
Parada 46 na década de 1990 era basicamente uma
plataforma pequena com telhas. Parada depois foi demolida com o tempo.
Foto: EFBrasil.
Fonte: Estações Ferroviárias.
Parada 46 já demolida em 2019 e sem trilhos.
Foto: Jean Carlos.
Fonte: Estações Ferroviárias.
Eram 33,5 quilômetros de extensão e 14 estações ou paradas no trecho Itapevi - Mairinque, sendo elas:
Itapevi - Transferência entre o trecho principal (para Júlio Prestes) e extensão operacional.
Santa Rita - Reconstruída em 2014, desativando a estação construída em 1985.
Cimenrita - Construída para a fábrica de cimento local, desativada em 2010.
Ambuitá - Desativada em 2010.
Amador Bueno - Terminal da maioria dos trens desse percurso, reconstruída em 2014 e atual terminal.
Parada 46 - Demolida.
São João Novo - Desativada.
Parada 50 - Demolida.
Mailasqui - Desativada e usada como Biblioteca atualmente.
Cinzano - Desativada e aos poucos sumindo do mapa.
Gabriel Pizá - Desativada.
São Roque - Desativada e abandonada. 
Marmeleiro - Desativada.
Mairinque - Terminal da linha, desativada para os trens de passageiros e em uso pela Prefeitura (Centro Cultural). Em Mairinque, há o entroncamento das linhas para Campinas e Santos, além da continuação para Sorocaba. Algumas paradas foram listadas na matéria que fizemos já. Acesse "Estações que a CPTM herdou e depois desativou."
Percurso da antiga Extensão Operacional Itapevi - Mairinque.
São 33,5 quilômetros de extensão. 
Autor: Victor Santos, 2020.
Todas as estações eram adaptadas para receber os Toshiba, com uma elevação para nivelar a plataforma ao piso do trem, mas apenas nos locais onde a porta estava. Parte das paradas também eram estruturas precárias ou improvisadas, o que tornava a operação ainda mais difícil.
Além de tudo isso, as vias não eram duplicadas em todos os trechos, não permitindo a operação de mais composições ao mesmo tempo. Apenas o trecho entre Itapevi e Amador Bueno era duplicado, como ainda é até hoje. 
Estação de Gabriel Pizá com as elevações para as portas dos trens.
A maioria das paradas do trecho possuíam essas adaptações.
Foto: Calors Roberto de Almeida.
Fonte: Estações Ferroviárias.
Além dos horários do trem até Mairinque, haviam ainda os trens de longo curso para o interior de São Paulo, o que tornava o trecho muito carregado em seu auge, chegando a possuir cerca de oito horários por dia para Mairinque. 
Mas aos poucos, com a maior concorrência do transporte rodoviário e o baixo investimento no transporte ferroviário, a linha acabou perdendo horários, passageiros e importância. Com isso, o trecho foi dividido em dois: entre Itapevi e Amador Bueno (com mais horários de trens), e Amador Bueno e Mairinque (com poucos horários). 
Propaganda da Fepasa na época das reformas do TUE Toshiba.
Acervo de Ricardo Koracsony.
Fonte: Estações Ferroviárias.
Ou seja, além de baixa disponibilidade, o passageiro ainda era obrigado a trocar de trem mais uma vez para seguir até Mairinque ou São Roque, deixando o percurso menos atrativo aos passageiros, que agora partiriam para o transporte rodoviário.
Quando a CPTM foi criada em 1992, ela assumiu o percurso por pouco tempo, já que somente em 1996 é que a Fepasa repassou a operação dos trens metropolitanos para a recém criada estatal. Segundo relatos, nesse momento, haviam apenas quatro horários para Mairinque, todos partindo de Amador Bueno. Na década de 1990, devido aos constantes vandalismos e assaltos, a CPTM desativou as bilheterias de Amador Bueno, Ambuitá e Santa Rita. 
Extensão operacional após desativação do trecho após Amador Bueno.
Percurso durou de 1998 e 2010, depois foi reestruturado. 
Autor: Victor Santos, 2020.
Logo em agosto de 1998, com a baixa demanda e posteriores problemas no percurso como vandalismo e via permanente com problemas, a CPTM desativou o trecho Amador Bueno - Mairinque, permanecendo a operação de Itapevi até Amador Bueno apenas. Naquele momento, a linha era denominada Linha B Cinza, onde em 2008 passou a se chamar Linha 8 Diamante.
Outro possível motivo pela desativação é que o percurso acabou se categorizando como uma ligação entre regiões metropolitanas (ou regional), o que não é função da CPTM, que foi fundada para operar e administrar as ligações férreas dentro das regiões metropolitanas. 
Mesmo desativado, o percurso até Mairinque ainda pertence a CPTM, já que ela assumiu as operações da Fepasa nesse trecho. Entre 2010 e 2014, a CPTM reformou a linha até Amador Bueno, trocando a bitola e desativando o saudoso trem japonês Toshiba. 
Algumas paradas nesse trecho foram desativadas e não retornaram após a reforma, como Cimenrita e Ambuitá, este último ainda foi cogitado mas não aconteceu o retorno. A parada Santa Rita foi reconstruída em um local diferente da original de 1985.
Atualmente, a linha 8 Diamante da CPTM corresponde parte do antigo percurso, entre Júlio Prestes e Itapevi (trecho principal), e entre Itapevi e Amador Bueno (extensão operacional), este último operando com a série 5400 (antiga série 5000, porém reformada). As paradas nesse percurso não possuem bilheterias ou sanitários, por isso são denominadas como "paradas" ao invés de estações. 
Extensão Operacional da Linha 8 Diamante atual, já com a 
desativação das paradas Ambuitá, Cimenrita e Santa Rita de 1985.
Autor: Victor Santos, 2020.
E como está o percurso até Mairinque hoje? Haveria possibilidade de retomar a operação?
Após a desativação do trem metropolitano até Mairinque, que agora faz parte da Região Metropolitana de Sorocaba, o trecho foi usado pelos trens de carga que ainda percorriam pela região, mas também foram aos poucos sendo menos frequentes até serem desativados também. No caso dos trens cargueiros, eram de responsabilidade da ALL Logística (atual Rumo Logística) que assumiu as operações da antiga Fepasa. Eles usavam parte dos trilhos hoje de responsabilidade da CPTM entre Amador Bueno e Júlio Prestes, mas quando a CPTM reformou o percurso após Itapevi, os trens da concessionária (que eram de bitola estreita) não poderiam mais acessar São Paulo por aqui.
Estação de Mairinque e sua famosa arquitetura de 1906.
Local é usado como Centro da Memória, e seu pátio é administrado
pela Concessionária Rumo.
Foto: Victor Santos, 2018. (autor).
Ou seja, a partir de 2014, o trecho após Amador Bueno ficou completamente abandonado, com mato cobrindo boa parte do leito ferroviário, estações demolidas, materiais da via permanente furtados, e até mesmo moradias irregulares na via. Mesmo de responsabilidade da CPTM, o percurso não era prioridade da companhia em manter ele ao menos cuidado, uma vez que nem mesmo os trens passavam mais por ali. 
As paradas antigas foram demolidas após o abandono, sumindo dos mapas sem deixar rastros, sendo quase impossível identificar onde eram localizadas. Algumas estações como São Roque, Mailasqui, São João Novo e Mairinque ainda foram mantidas pelas cidades, esta última como Centro da Memória. 
Até 1999, uma parte das estações ainda eram usadas pelos trens regionais entre São Paulo e Presidente Epitácio, mas com a desativação deste em 16 de janeiro daquele ano, elas também perderam suas funções para a linha. 
Estação de São Roque em 2010. 
Foto: Adriano Vieira Domingues.
Fonte: Estações Ferroviárias.
Pelo Google Earth, foi possível ver como estão as vias após Amador Bueno, e o que se pôde constatar é um completo abandono e até mesmo um "sumiço" dos trilhos em vários trechos. A localização de algumas paradas somente foi possível ao avaliar algumas questões: Fotos antigas e detalhes próximos na foto, nomes de distritos ou bairros locais, quilometragem da linha e vias ainda possíveis de serem vistas por imagens de satélite. Foi um trabalho imenso, mas possível graças à sites como o Estações Ferroviárias do Brasil, que ainda guarda as memórias das estações abandonadas do passado.
Local entre as estações São João Novo e Mailasqui.
Percurso quase não pode ser visto por cima.
Foto: Google Earth, 2019.
Região da Parada 50.
Foto: Google Earth, 2019.
Na década de 1920, a Sorocabana fez uma retificação na linha para diminuir as curvas existentes no ramal original, fazendo com que muitas paradas originais fossem desativadas e trocadas de lugar, como é o caso também de São Roque, cuja a estação original de 1875 foi desativada e hoje abriga uma escola local. 
Porém, mesmo com essa retificação do trecho, ainda há muitas curvas fechadas no percurso, o que dificultaria a operação dos trens maiores e mais largos atualmente, sendo necessário uma nova retificação ou a construção de uma nova linha na região. Como muitos distritos e cidades se formaram ao redor da linha, seria ainda mais complexo voltar a operação dos trens, pois seria necessário obras para diminuir as interferências na ferrovia e até mesmo desapropriações.
Local após Amador Bueno ocupado por moradias 
irregulares, mesmo o leito ferroviário pertencer ainda a CPTM.
Foto: Google Earth, 2019.
A CPTM cogitou a retomada do trecho há alguns anos atrás, porém como um percurso turístico ligando São Paulo à São Roque, o Expresso Turístico da companhia, hoje com ligações para Jundiaí, Mogi das Cruzes e Paranapiacaba. Porém, devido a complexidade para retomar o trecho, a companhia acabou desistindo da ideia, pois o custo de implantação seria muito alto para um trem passando apenas aos finais de semana. Também seria necessário a autorização da ANTT (Agência Nacional dos Transportes Terrestres) para essa operação.
A obra seria muito complicada por ser necessário retirar as ocupações irregulares na via, refazer alguns trechos para aumentar a bitola, recolocar os trilhos e dormentes, sinalização e ainda possivelmente esbarraria na preservação das estações originais ainda de pé.
Ou seja caros leitores, o investimento para reutilizar o percurso seria alto demais para um trem turístico, e mesmo que transformasse o percurso em uma linha regular para passageiros, ainda sim haveriam muitos problemas para essa utilização.
Para fazer um percurso relativamente parecido entre Itapevi e Mairinque, a única opção são os ônibus entre Itapevi e São Roque (gerenciado pela Artesp e operado pela Viação Piracicabana), e  as linhas entre São Roque e Mairinque (gerenciadas pela EMTU-SP e operados pela Rápido Campinas, antes pela Viação São Roque). 
Em percursos diretos, o passageiro pode utilizar a linha São Paulo/Barra Funda - São Roque operado pela Viação Cometa, mas não há opções diretas entre São Paulo e Mairinque, sendo necessário continuar o percurso por outros meios (linhas urbanas ou outros transportes). 
Linhas de ônibus fazem parte do percurso original.
À esquerda, a linha entre São Roque e Mairinque gerenciada pela EMTU,
e à direita, a linha entre Itapevi e São Roque gerenciada pela ARTESP. 
Foto: Victor Santos, 2018. 
A atual gestão estadual fala muito na construção de ligações ferroviárias entre São Paulo e cidades do interior, mas é necessário que haja um grande estudo de por onde essas novas linhas irão passar, uma vez que as linhas antigas já não comportam mais a operação de trens. 
Por fim, fica a reflexão de que o Estado preferiu, no passado, desativar ou abandonar as antigas ligações férreas para a capital em favorecimento ao transporte rodoviário (para cargas ou passageiros), este saturado já. 
O que se fala muito é na retomada de algo que existia e apenas poderia ter sido modernizado ou reestruturado para continuar operando, mas poucos citam o fato de que para retornar as operações dos trens regionais, seriam necessário vários anos de projeto, construção e operação, anos esses que foram perdidos e refletem nas decisões errôneas do passado.

Texto: Victor Santos.
Fontes: 

Nenhum comentário:

Postar um comentário