terça-feira, 29 de setembro de 2020

Caminhos perdidos - Trem metropolitano em Mairinque


TUE Toshiba na estação de Mairinque, interior de São Paulo.
Foto: Coaraci Camargo.
Fonte: Estações Ferroviárias 
Atualmente, muito se comenta sobre o retorno dos trens regionais no Estado de São Paulo, onde linhas férreas ligavam a capital a diversas cidades do interior do Estado e até mesmo para outros Estados. Dentre elas, havia a ligação férrea entre São Paulo e Sorocaba, linha original da antiga Estrada de Ferro Sorocabana. Mas após alguns anos, boa parte da linha foi utilizada como transporte metropolitano entre São Paulo e Mairinque passado por várias cidades. 
Como será que está o trecho do antigo trem metropolitano de Mairinque e ainda seria viável retornar com as operações pelo mesmo caminho? Saberemos hoje.

Em 10 de julho de 1875, era inaugurada a linha São Paulo - Sorocaba pela então Estrada de Ferro Sorocabana, uma companhia ferroviária fundada por Luís Mateus Maylsaky. O objetivo da linha transportar toda a produção de algodão desde a região de Sorocaba até a capital paulista. 
A linha foi projetada com bitola estreita, de 1.000 mm, ou 1,00 m, diferente da utilizada pela Sao Paulo Railway Company, que projetou sua linha Santos à Jundiaí com bitola larga (1.600mm). 
A linha da Sorocabana era conectada com a linha da Sao Paulo Railway, o que permitia enviar a produção até o Porto de Santos, pois as duas linhas percorriam paralelamente entre a Lapa e o Centro de São Paulo.
A linha acabou sendo importante para a formação das cidades à Oeste do Estado de São Paulo, onde a Linha Tronco da companhia era expandida, chegando ao extremo em 1922 em Presidente Epitácio, além de diversos ramais construídos. 
Após muitos anos de problemas financeiros, trocas de administração entre a gestão pública e privada, a Estrada de Ferro Sorocabana acabou se unindo a malha da Ferrovia Paulista Sociedade Anônima (ou Fepasa) em 1971. 
Locomotiva da EFS chegando em Júlio Prestes em 1930, na época em construção
do prédio atual. 
Foto: autor desconhecido.
Fonte: Estações Ferroviárias.
Com a grande industrialização de São Paulo e seu rápido crescimento, tornou-se comum que os habitantes das cidades ao redor da capital se deslocassem para o centro de São Paulo, tornando-se necessário a criação dos trens urbanos para essas funções. As viagens entre São Paulo e o interior paulista continuaria, mas aos poucos, a demanda para essas viagens foi caindo, em contrapartida das viagens dos trens urbanos que cresceram muito ao longo dos anos.
Em 1957, a Sorocabana recebeu a primeira unidade de uma encomenda de 30 trens japoneses TUE Toshiba (posteriormente série 4800 da CPTM), que foram projetados para essa demanda de passageiros na região metropolitana. Inicialmente operavam tanto em percursos dentro da região metropolitana como em ligação com as cidades do interior. 
Porém, um novo crescimento na demanda entre 1960 e 1970 acabou prejudicando a operação dessa série de trens, uma vez que eram trens estreitos e com uma capacidade mais baixa do que era necessário para a demanda. Até aquele momento, a Sorocabana possuía dois ramais de trens urbanos: a Linha Tronco (depois Linha Oeste da Fepasa) e o Ramal Jurubatuba (depois Linha Sul da Fepasa).
Estação de Itapevi em 2002, já na fase da CPTM, à esquerda, o TUE Toshiba,
e à direita, o TUE 5000 "Fepasão".
Estação era ponto de transferência entre os trens de bitola larga (Itapevi - Júlio Prestes)
e os trens de bitola estreita (Itapevi - Amador Bueno).
Foto: Ricardo Koracsony.
Fonte: Estações Ferroviárias
Com a chegada da Fepasa, a companhia reconstruiu o trecho principal da Linha Oeste, trocando a bitola de estreita para mista (estreita de 1.000 mm e larga de 1.600 mm) para possibilitar a operação de trens mais largos e maiores que os Toshiba. Em 25 de janeiro de 1979, a Fepasa apresentou a nova ligação com novas estações, trens maiores e mais novos (a série 5000), e uma nova sinalização.
Os trens Toshiba, que estavam em um processo de abandono por não haver mais demanda para eles, acabaram sendo usados na ligação entre Itapevi e Mairinque, que virou a Extensão Operacional da Linha Oeste, embora também fossem brevemente usados para as viagens regionais (até onde havia eletrificação da linha).
Para isso, foram feitas reformas entre 1985 e 1987 nas composições que iriam operar no trecho, rendendo o nome "Trem Rio Claro" pelo fato da reforma dessa série ter sido feita nas oficinas de Rio Claro da Fepasa. Posteriormente, estes trens operaram também na Extensão Operacional da Linha C da CPTM (1992 - 2001), e no TIM - Trem Intra Metropolitano entre Santos e São Vicente (1992 - 1998). Observação: Veja mais sobre o TIM aqui no blog mesmo. Acesse: "Por que a CPTM chegou a operar em Santos?".
Outra questão foram as paradas, que precisavam ser readaptadas para esses trens, isso de forma provisória e bem irregular.
Como a Fepasa nunca teve planos de reconstruir o trecho restante desde Itapevi até Mairinque, isso claro associado ao fato do abandono do transporte ferroviário pelas gestões públicas, a linha sempre foi operada de forma bem irregular e com baixa capacidade. Nesse percurso, compartilhado com os trens de carga da companhia, a linha não era totalmente duplicada e possuía muitas curvas e passagens em nível com a rua. A Fepasa reconstruiu algumas estações entre Itapevi e Mairinque, mas a maioria ainda eram estruturas antigas e precárias.
Estação de Amador Bueno, reconstruída em 1985 para atender aos
trens metropolitanos. Contraste com as paradas após
Amador Bueno.
Foto: Auto desconhecido.
Fonte: Estações Ferroviárias
Parada 46 na década de 1990 era basicamente uma
plataforma pequena com telhas. Parada depois foi demolida com o tempo.
Foto: EFBrasil.
Fonte: Estações Ferroviárias.
Parada 46 já demolida em 2019 e sem trilhos.
Foto: Jean Carlos.
Fonte: Estações Ferroviárias.
Eram 33,5 quilômetros de extensão e 14 estações ou paradas no trecho Itapevi - Mairinque, sendo elas:
Itapevi - Transferência entre o trecho principal (para Júlio Prestes) e extensão operacional.
Santa Rita - Reconstruída em 2014, desativando a estação construída em 1985.
Cimenrita - Construída para a fábrica de cimento local, desativada em 2010.
Ambuitá - Desativada em 2010.
Amador Bueno - Terminal da maioria dos trens desse percurso, reconstruída em 2014 e atual terminal.
Parada 46 - Demolida.
São João Novo - Desativada.
Parada 50 - Demolida.
Mailasqui - Desativada e usada como Biblioteca atualmente.
Cinzano - Desativada e aos poucos sumindo do mapa.
Gabriel Pizá - Desativada.
São Roque - Desativada e abandonada. 
Marmeleiro - Desativada.
Mairinque - Terminal da linha, desativada para os trens de passageiros e em uso pela Prefeitura (Centro Cultural). Em Mairinque, há o entroncamento das linhas para Campinas e Santos, além da continuação para Sorocaba. Algumas paradas foram listadas na matéria que fizemos já. Acesse "Estações que a CPTM herdou e depois desativou."
Percurso da antiga Extensão Operacional Itapevi - Mairinque.
São 33,5 quilômetros de extensão. 
Autor: Victor Santos, 2020.
Todas as estações eram adaptadas para receber os Toshiba, com uma elevação para nivelar a plataforma ao piso do trem, mas apenas nos locais onde a porta estava. Parte das paradas também eram estruturas precárias ou improvisadas, o que tornava a operação ainda mais difícil.
Além de tudo isso, as vias não eram duplicadas em todos os trechos, não permitindo a operação de mais composições ao mesmo tempo. Apenas o trecho entre Itapevi e Amador Bueno era duplicado, como ainda é até hoje. 
Estação de Gabriel Pizá com as elevações para as portas dos trens.
A maioria das paradas do trecho possuíam essas adaptações.
Foto: Calors Roberto de Almeida.
Fonte: Estações Ferroviárias.
Além dos horários do trem até Mairinque, haviam ainda os trens de longo curso para o interior de São Paulo, o que tornava o trecho muito carregado em seu auge, chegando a possuir cerca de oito horários por dia para Mairinque. 
Mas aos poucos, com a maior concorrência do transporte rodoviário e o baixo investimento no transporte ferroviário, a linha acabou perdendo horários, passageiros e importância. Com isso, o trecho foi dividido em dois: entre Itapevi e Amador Bueno (com mais horários de trens), e Amador Bueno e Mairinque (com poucos horários). 
Propaganda da Fepasa na época das reformas do TUE Toshiba.
Acervo de Ricardo Koracsony.
Fonte: Estações Ferroviárias.
Ou seja, além de baixa disponibilidade, o passageiro ainda era obrigado a trocar de trem mais uma vez para seguir até Mairinque ou São Roque, deixando o percurso menos atrativo aos passageiros, que agora partiriam para o transporte rodoviário.
Quando a CPTM foi criada em 1992, ela assumiu o percurso por pouco tempo, já que somente em 1996 é que a Fepasa repassou a operação dos trens metropolitanos para a recém criada estatal. Segundo relatos, nesse momento, haviam apenas quatro horários para Mairinque, todos partindo de Amador Bueno. Na década de 1990, devido aos constantes vandalismos e assaltos, a CPTM desativou as bilheterias de Amador Bueno, Ambuitá e Santa Rita. 
Extensão operacional após desativação do trecho após Amador Bueno.
Percurso durou de 1998 e 2010, depois foi reestruturado. 
Autor: Victor Santos, 2020.
Logo em agosto de 1998, com a baixa demanda e posteriores problemas no percurso como vandalismo e via permanente com problemas, a CPTM desativou o trecho Amador Bueno - Mairinque, permanecendo a operação de Itapevi até Amador Bueno apenas. Naquele momento, a linha era denominada Linha B Cinza, onde em 2008 passou a se chamar Linha 8 Diamante.
Outro possível motivo pela desativação é que o percurso acabou se categorizando como uma ligação entre regiões metropolitanas (ou regional), o que não é função da CPTM, que foi fundada para operar e administrar as ligações férreas dentro das regiões metropolitanas. 
Mesmo desativado, o percurso até Mairinque ainda pertence a CPTM, já que ela assumiu as operações da Fepasa nesse trecho. Entre 2010 e 2014, a CPTM reformou a linha até Amador Bueno, trocando a bitola e desativando o saudoso trem japonês Toshiba. 
Algumas paradas nesse trecho foram desativadas e não retornaram após a reforma, como Cimenrita e Ambuitá, este último ainda foi cogitado mas não aconteceu o retorno. A parada Santa Rita foi reconstruída em um local diferente da original de 1985.
Atualmente, a linha 8 Diamante da CPTM corresponde parte do antigo percurso, entre Júlio Prestes e Itapevi (trecho principal), e entre Itapevi e Amador Bueno (extensão operacional), este último operando com a série 5400 (antiga série 5000, porém reformada). As paradas nesse percurso não possuem bilheterias ou sanitários, por isso são denominadas como "paradas" ao invés de estações. 
Extensão Operacional da Linha 8 Diamante atual, já com a 
desativação das paradas Ambuitá, Cimenrita e Santa Rita de 1985.
Autor: Victor Santos, 2020.
E como está o percurso até Mairinque hoje? Haveria possibilidade de retomar a operação?
Após a desativação do trem metropolitano até Mairinque, que agora faz parte da Região Metropolitana de Sorocaba, o trecho foi usado pelos trens de carga que ainda percorriam pela região, mas também foram aos poucos sendo menos frequentes até serem desativados também. No caso dos trens cargueiros, eram de responsabilidade da ALL Logística (atual Rumo Logística) que assumiu as operações da antiga Fepasa. Eles usavam parte dos trilhos hoje de responsabilidade da CPTM entre Amador Bueno e Júlio Prestes, mas quando a CPTM reformou o percurso após Itapevi, os trens da concessionária (que eram de bitola estreita) não poderiam mais acessar São Paulo por aqui.
Estação de Mairinque e sua famosa arquitetura de 1906.
Local é usado como Centro da Memória, e seu pátio é administrado
pela Concessionária Rumo.
Foto: Victor Santos, 2018. (autor).
Ou seja, a partir de 2014, o trecho após Amador Bueno ficou completamente abandonado, com mato cobrindo boa parte do leito ferroviário, estações demolidas, materiais da via permanente furtados, e até mesmo moradias irregulares na via. Mesmo de responsabilidade da CPTM, o percurso não era prioridade da companhia em manter ele ao menos cuidado, uma vez que nem mesmo os trens passavam mais por ali. 
As paradas antigas foram demolidas após o abandono, sumindo dos mapas sem deixar rastros, sendo quase impossível identificar onde eram localizadas. Algumas estações como São Roque, Mailasqui, São João Novo e Mairinque ainda foram mantidas pelas cidades, esta última como Centro da Memória. 
Até 1999, uma parte das estações ainda eram usadas pelos trens regionais entre São Paulo e Presidente Epitácio, mas com a desativação deste em 16 de janeiro daquele ano, elas também perderam suas funções para a linha. 
Estação de São Roque em 2010. 
Foto: Adriano Vieira Domingues.
Fonte: Estações Ferroviárias.
Pelo Google Earth, foi possível ver como estão as vias após Amador Bueno, e o que se pôde constatar é um completo abandono e até mesmo um "sumiço" dos trilhos em vários trechos. A localização de algumas paradas somente foi possível ao avaliar algumas questões: Fotos antigas e detalhes próximos na foto, nomes de distritos ou bairros locais, quilometragem da linha e vias ainda possíveis de serem vistas por imagens de satélite. Foi um trabalho imenso, mas possível graças à sites como o Estações Ferroviárias do Brasil, que ainda guarda as memórias das estações abandonadas do passado.
Local entre as estações São João Novo e Mailasqui.
Percurso quase não pode ser visto por cima.
Foto: Google Earth, 2019.
Região da Parada 50.
Foto: Google Earth, 2019.
Na década de 1920, a Sorocabana fez uma retificação na linha para diminuir as curvas existentes no ramal original, fazendo com que muitas paradas originais fossem desativadas e trocadas de lugar, como é o caso também de São Roque, cuja a estação original de 1875 foi desativada e hoje abriga uma escola local. 
Porém, mesmo com essa retificação do trecho, ainda há muitas curvas fechadas no percurso, o que dificultaria a operação dos trens maiores e mais largos atualmente, sendo necessário uma nova retificação ou a construção de uma nova linha na região. Como muitos distritos e cidades se formaram ao redor da linha, seria ainda mais complexo voltar a operação dos trens, pois seria necessário obras para diminuir as interferências na ferrovia e até mesmo desapropriações.
Local após Amador Bueno ocupado por moradias 
irregulares, mesmo o leito ferroviário pertencer ainda a CPTM.
Foto: Google Earth, 2019.
A CPTM cogitou a retomada do trecho há alguns anos atrás, porém como um percurso turístico ligando São Paulo à São Roque, o Expresso Turístico da companhia, hoje com ligações para Jundiaí, Mogi das Cruzes e Paranapiacaba. Porém, devido a complexidade para retomar o trecho, a companhia acabou desistindo da ideia, pois o custo de implantação seria muito alto para um trem passando apenas aos finais de semana. Também seria necessário a autorização da ANTT (Agência Nacional dos Transportes Terrestres) para essa operação.
A obra seria muito complicada por ser necessário retirar as ocupações irregulares na via, refazer alguns trechos para aumentar a bitola, recolocar os trilhos e dormentes, sinalização e ainda possivelmente esbarraria na preservação das estações originais ainda de pé.
Ou seja caros leitores, o investimento para reutilizar o percurso seria alto demais para um trem turístico, e mesmo que transformasse o percurso em uma linha regular para passageiros, ainda sim haveriam muitos problemas para essa utilização.
Para fazer um percurso relativamente parecido entre Itapevi e Mairinque, a única opção são os ônibus entre Itapevi e São Roque (gerenciado pela Artesp e operado pela Viação Piracicabana), e  as linhas entre São Roque e Mairinque (gerenciadas pela EMTU-SP e operados pela Rápido Campinas, antes pela Viação São Roque). 
Em percursos diretos, o passageiro pode utilizar a linha São Paulo/Barra Funda - São Roque operado pela Viação Cometa, mas não há opções diretas entre São Paulo e Mairinque, sendo necessário continuar o percurso por outros meios (linhas urbanas ou outros transportes). 
Linhas de ônibus fazem parte do percurso original.
À esquerda, a linha entre São Roque e Mairinque gerenciada pela EMTU,
e à direita, a linha entre Itapevi e São Roque gerenciada pela ARTESP. 
Foto: Victor Santos, 2018. 
A atual gestão estadual fala muito na construção de ligações ferroviárias entre São Paulo e cidades do interior, mas é necessário que haja um grande estudo de por onde essas novas linhas irão passar, uma vez que as linhas antigas já não comportam mais a operação de trens. 
Por fim, fica a reflexão de que o Estado preferiu, no passado, desativar ou abandonar as antigas ligações férreas para a capital em favorecimento ao transporte rodoviário (para cargas ou passageiros), este saturado já. 
O que se fala muito é na retomada de algo que existia e apenas poderia ter sido modernizado ou reestruturado para continuar operando, mas poucos citam o fato de que para retornar as operações dos trens regionais, seriam necessário vários anos de projeto, construção e operação, anos esses que foram perdidos e refletem nas decisões errôneas do passado.

Texto: Victor Santos.
Fontes: 

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Ônibus Padron - O projeto inovador para o transporte coletivo

Marcopolo Viale em operação em Porto Alegre-RS.
Modelo foi projetado para a categoria padron no final da década de 1990.
Foto: Victor Santos.
Até meados dos anos 1970, os ônibus urbanos eram vistos como um transporte ultrapassado no Brasil, utilizando basicamente uma mecânica idêntica ou semelhante a dos caminhões que circulavam naquela época. Com a necessidade de aumentar o conforto e capacidade do transporte coletivo, um projeto de modernizar toda a estrutura do ônibus fez-se necessário, surgindo o Padron. 
O Padron é fruto de uma série de processos de estudos, desenvolvimento e normatização do projeto e fabricação de carrocerias e chassi para ônibus, aumentando a eficiência e confiança no transporte sobre pneus. Hoje, o Padron está longe de ser a realidade em muitos sistemas de transportes, e iremos abordar o porquê e conhecer mais sobre esse projeto tão inovador.

Muitos dos acontecimentos da década de 1970 fizeram com que diversos desdobramentos acontecessem na história dos transportes, sobretudo no transporte urbano sobre pneus, onde até aquele momento vivia uma espécie de estagnação, com poucos avanços tecnológicos e muitos problemas. A Crise do Petróleo (ou Oil Shock) de 1973, que se alastrou durante muitos anos, fez com os órgãos responsáveis pelo transporte buscasse uma forma de melhorar o rendimento, capacidade, economia e conforto do transporte urbano. Como as cidades haviam crescido fortemente pela industrialização, por consequência, a demanda por um transporte mais eficiente cresceu.
Nessa época, as gestões públicas voltaram a investir no sistema ferroviário para passageiros, em sucateamento desde os anos 1950, assim sendo inaugurados os sistemas de metrô de São Paulo (em 1974) e do Rio de Janeiro (em 1979). Isso fez com que o crescimento da cidades aumentasse sem que a rede de metrô ou trem acompanhasse esse crescimento, tornando o ônibus fundamental em regiões distantes da rede metroferroviária. 

Com isso, o recém criado Ministério dos Transportes ordenou, através da EBTU (Empresa Brasileira de Transportes Urbanos), que a então Empresa de Planejamento de Transportes (Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes – GEIPOT) desenvolvesse um projeto para a padronização dos métodos de fabricação dos ônibus. Surgia então o “Estudo de Padronização dos Ônibus Urbanos – Padron”. 
O projeto envolveria também a Secretaria de Planejamento da Presidência da República (Seplan), e posteriormente as fabricantes do setor através da Fabus – Associação Nacional dos Fabricantes de Ônibus. Havia também outros órgãos, fundações e empresas envolvidas: a fundação Instituto do Planejamento Econômico e Social (Ipea), o Instituto de Pesquisas Tecnológicas S/A, a Projetos Mecânicos S/C Ltda., a Via Rethys Engenharia de Projetos, e a Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e de Políticas Urbanas (CNPU).
O projeto contemplava as seguintes questões:
  • Durabilidade e resistência da carroceria;
  • Mais segurança para operadores e passageiros;
  • Dimensões mais adequadas para portas, janelas, para-brisas, altura do teto, assentos, pisos e escadas;
  • Número e localização das portas;
  • Design mais moderno e robustos dos modelos;
  • Melhoramento nos postos de trabalho dos cobradores e motoristas;
  • Uso de materiais menos corrosivos e contra fogo na fabricação;
  • Capacidade de transporte maior;
Além da carroceria ter todos esses e outros aprimoramentos, o chassi dos ônibus padron também precisariam atender as questões impostas, como:
  • Localização do motor, sendo traseiro ou entre eixos (central);
  • Potência (mínima de 200 cavalos);
  • Suspensão pneumática e com controle de altura;
  • Transmissão automática;
  • Direção hidráulica;
  • Comprimento mínimo de 12 metros;
  • Níveis menores de ruído e emissão de gases.
Ou seja caros leitores, o projeto do Padron serviria para definir normas para a construção dos modelos de ônibus naquela época, já que até aquele momento não havia quaisquer tipo de controle da qualidade ou da forma como os ônibus eram produzidos. Abaixo as especificações gerais da carroceria, extraídos do livro. "Ônibus - A História do Transporte Coletivo e do Desenvolvimento Urbano do Brasil.":
Extraído do livro
"Ônibus - A História do Transporte Coletivo e do Desenvolvimento Urbano do Brasil."

Extraído do livro 
"Ônibus - A História do Transporte Coletivo e do Desenvolvimento Urbano do Brasil."

Extraído do livro 
"Ônibus - A História do Transporte Coletivo e do Desenvolvimento Urbano do Brasil."

Extraído do livro 
"Ônibus - A História do Transporte Coletivo e do Desenvolvimento Urbano do Brasil."

O projeto foi divido em três etapas: A primeira etapa era reunir estudos e formar as especificações para as fabricantes seguir. A segunda etapa seria as definições técnicas para o chassi do projeto. E a terceira e última etapa seria a junção de todo o processo acumulado durante os estudos. Em 1983, foi lançado o relatório final pelo Geipot e EBTU, onde havia todas as exigências avaliadas nos testes.
Uma curiosidade é que parte do processo foi inspirado nas mudanças que os órgãos de transporte europeus estavam determinando nessa mesma época, sobretudo para também modernizar o transporte urbano. A VOV (Verband Öffentlicher Verkhsbetrieb), uma associação de empresas na Alemanha Ocidental, que propôs mudanças na forma com que os ônibus e bondes eram produzidos, isso na década de 1960. 
Modelo O305 da Mercedes-Benz fez parte da
primeira geração de Padron da Alemanha.
Foto: Wikipédia.
Ou seja, basicamente os novos ônibus construídos a partir desse projeto, seguiriam diretrizes semelhantes aos ônibus europeus, um grande avanço para a época.
Já na década de 1980, as fabricantes se posicionaram para oferecer seus modelos, se unindo e oferecendo as seguintes opções:
Protótipo 01 – Carroceria da Marcopolo e chassi Volvo.
Protótipo 02 – Carroceria da Caio e chassi Volvo.
Protótipo 03 – Carroceria Caio com chassi Mercedes-Benz.
Protótipo 04 – Carroceria Marcopolo com chassi Mercedes-Benz.
Protótipo 05 – Carroceria Ciferal com chassi Scania.
Com isso, houve uma série de processos de testes em algumas capitais pelo país, e que ocasionou em uma transformação por parte das fabricantes, que precisaram aperfeiçoar seus modelos de chassi e carroceria. Algumas chegaram a importar tecnologia para atender as normas, uma vez que nunca havia acontecido isso antes e a tecnologia usada naquela época era ligeiramente ultrapassada em comparação as outras fabricantes. Com a chegada dos ônibus articulados nesse mesmo período, em 1978, essas medidas foram adequadas as suas características, tornando-os mais próximos da demanda a ser atendida. A primeira cidade a ter os padron em circulação comercial foi Recife, em 1981.
Protótipo do Padron da Marcopolo com chassi B58 da Volvo:
Mudanças fizeram nascer o modelo Torino posteriormente em 1983.
Foto: arquivo Portal do Ônibus.
No início, tudo indicava que esse seria a nova face do transporte coletivo por ônibus, pensado no conforto, segurança e modernidade dos passageiros, operadores e empresas do setor. Mas tudo mudaria quando as empresas de transporte começaram a reclamar dos custos para a aquisição e operação dos modelos dessa categoria. Segundo elas, isso influenciaria na rentabilidade financeira.
As fabricantes também alegaram altos custos para a fabricação de ônibus padron no país, sobretudo porque as empresas não queriam aumentar seus custos de operação, o que poderia acarretar em uma baixa procura por esses modelos.
No final, tanto as fabricantes quanto as empresas começaram a rever muitas das questões exigidas para, basicamente, baratear os custos de fabricação, aquisição e operação, diminuindo exigências como o conforto aos operadores e passageiros, resistência e segurança dos materiais usados na fabricação, e até mesmo nas questões do chassi. 
O mais notável nessa década foi que as empresas públicas, como a CMTC - Companhia Municipal dos Transportes Coletivos de São Paulo, e a CTC – Companhia de Transportes Coletivos do Rio de Janeiro, adquiriram modelos padron para as operações em suas determinadas cidades. Em São Paulo, ainda houve a aquisição de modelos padron trólebus, que adotaram muitas das exigências do projeto original do padron. 
Marcopolo Torino (versão de 1983) com chassi Scania K112CL:
Foram 190 unidades do modelo padron para a CMTC de São Paulo.
Foto: arquivo Portal do Ônibus.
Como não houve uma maior pressão para adotar as medidas exigidas em grande escala, as fabricantes foram utilizando alguns dos parâmetros determinados, como portas maiores e motorização traseira nos modelos fabricados desde então. Porém, o objetivo principal dos estudos, que era diminuir o uso dos chassis com tecnologia ultrapassada e menos segura e confortável aos passageiros, não foi cumprida. 
Mesmo com a diminuição do projeto original nos modelos, algumas mudanças surtiram efeitos, mudanças essas sentidas até os dias atuais. O uso dos ônibus com motorização traseira foi, por um tempo, aumentando de acordo com as renovações de frota das cidades, embora atualmente esteja em menor uso. 

Em 1987, chegou ao mercado o modelo padron mais comentado e referenciado até os dias: o Monobloco O-371. Fabricado pela Mercedes-Benz, o padron contava com boa parte dos itens exigidos no projeto original, como o design, portas mais largas, motorização traseira, janelas e para-brisas mais amplos, resistência maior e durabilidade aumentada. Em algumas questões, o Monobloco da Mercedes acabou sendo referência na categoria. Houve três versões: O-371U (Urbano), O-371UL (Urbano Longo), e O-371UP (Urbano Padron).
Com direção hidráulica, transmissão automática, suspensão aprimorada, maior área iluminada (parte interna), e maior capacidade, o modelo foi destaque por muitos anos nos sistemas de transporte urbano, chamando atenção pelo design arrojado, resistência e conforto aos passageiros e operadores. O modelo se tornou popular entre as empresas, sendo fabricado de 1987 até 1994, mesmo com os problemas encontrados posteriormente nas carrocerias.
Monobloco O-371UP em operação pela CMTC:
Modelo trouxe inovação e conforto na sua época.
Foto: Edivan do Vale.
Outras fabricantes acabaram adotando muitos parâmetros do Padron em seus modelos de carroceria, tais como: Caio, Cobrasma, Ciferal, Mafersa, Marcopolo, Nielson e Thamco. O projeto serviu de inspiração para os novos modelos de ônibus urbano na época, entre os mais populares estão:
Marcopolo Torino, lançado em 1983 (modelo produzido até os dias atuais).
Caio Amélia, lançado em 1980, substituído pelo Vitória em 1988.
Mafersa M-210 (monobloco), lançado na década de 1980.
Ciferal Padron Amazonas, lançado em 1982, depois substituído pelo Padron Alvorada em 1986.
Thamco Padron Falcão e Padron Águia, lançados entre 1985 e 1986. 
Mafersa M-210 Trólebus:
Fabricante, que era destaque no setor ferroviário, produziu modelos
Padron que chamaram a atenção pelo acabamento interno e tecnologia
próxima as dos trens.
Foto: Victor Santos, 2019.
E por que o Padron não se tornou popular nas cidades?
Como vimos acima, aconteceram diversas mudanças no projeto original do Padron, se adequando as exigências das empresas e fabricantes do setor, e diminuindo os custos com todo o processo pensado. Durante a década de 1990, os modelos Padron cresceram timidamente no país, destaque para as cidades de Belo Horizonte, Curitiba e São Paulo, que renovaram parte de sua frota antiga com modelos do tipo.
Ainda na década de 1990, com as necessidades de atender as novas exigências de acessibilidade no transporte público, seguindo os parâmetros que outros países adotaram, começaram a surgir no final da década os ônibus Low Entry, ou Piso Baixo, que possuem parte do seu piso interno rebaixado para facilitar o acesso de cadeirantes ou idosos. 
Excluindo os degraus, os modelos seguiam também parte dos itens exigidos na categoria padron: motor traseiro, portas mais largas e assentos mais confortáveis. 
Entre o final da década de 1990 e inicio dos anos 2000, as fabricantes de chassi e modelos de ônibus perceberam a necessidade de modernizar sua linha de produção, trazendo de volta alguns itens do projeto do padron, como um conforto maior aos passageiros e motoristas, maior durabilidade nas carrocerias, design melhorado e motorização traseira. 
Marcopolo Torino Low Entry com chassi Mercedes-Benz O-500U:
Padron piso baixo chegou ao país no final da década de 1990.
Foto: Victor Santos, 2020.
Porém, como o custo sempre influencia na tomada de decisão das empresas e órgãos gestores do transporte público, a partir dos anos 2000, as renovações de frota das cidades começaram a tender para o lado dos ônibus convencionais ou básicos, com motorização dianteira e quase nenhuma diferença dos atuais modelos de caminhões.
Com um custo de aquisição e operação bem mais baixos se comparados ao padron, a popularidade dos “cabritos” – termo usado para os ônibus com motor dianteiro, acabaram prejudicando o conforto, não somente dos passageiros, mas como dos motoristas e cobradores.
Embora não sejam tão modernos quanto o padron, os convencionais receberam alguns avanços tecnológicos ao longo dos anos, como diminuição dos ruídos, melhor suspensão, maior potência e níveis de poluição menores. Porém, há desvantagens quanto ao o uso desse tipo de chassi:
  • O calor produzido pelo motor na parte dianteira é passado diretamente aos motoristas e aos passageiros, o que aumenta, por exemplo, o desconforto à um motorista que trabalha muito tempo literalmente ao lado do motor. Logicamente, o calor é passado para trás da carroceria de acordo com a movimentação do ônibus, trazendo esse calor também para os passageiros.
  • O barulho constante para o motorista pode ocasionar em problemas de saúde a longo prazo, como estresse ou perda de audição. O ruído também afeta a qualidade da viagem dos passageiros, uma vez que o barulho do motor é exposto diretamente aos passageiros.
  • Embora possua o opcional da transmissão automática, a maioria das aquisições dos ônibus convencionais é com transmissão manual, que também pode gerar problemas de saúde aos motoristas, além de gerar os constantes “trancos” ocasionados pela troca de marcha. 
  • A suspensão com feixe de molas (suspensão comum nessa categoria) também é um problema aos passageiros e operadores, embora também possuam chassi com suspensão pneumática. 
  • A manutenção é barata justamente por ser um tipo de ônibus com uma durabilidade muito menor. Em média, os convencionais duram bem menos que os modelos padron. 
  • A acessibilidade também é afetada, uma vez que esse tipo de ônibus não pode ser aplicado com o piso baixo, exigindo a instalação da Plataforma Elevatória Veicular, ou somente elevador, que exigem mais atenção a manutenção e operação, o que nem sempre pode existir. 
Marcopolo Torino com motor dianteiro em 
operação no sistema BRT Move de Belo Horizonte.
Foto: Victor Santos, 2017. 
As fabricantes tentaram tornar o convencional mais atrativo as empresas, oferecendo chassi com as melhorias disponíveis, além de oferecerem um custo mais baixo. Isso gerou a falsa sensação de que os convencionais se tornaram os novos “padron”, ou “semi-padron”, que na verdade são apenas modelos aperfeiçoados da tradicional linha de ônibus com motor de caminhão desde o século passado.
Até mesmo os corredores de ônibus BRT acabaram recebendo esses modelos, como é o caso dos sistemas de BRT de Belo Horizonte, Recife, Fortaleza e Sorocaba, interior de São Paulo, sendo erroneamente chamados de padron em alguns sistemas.
Marcopolo Torino com chassi Scania K310IB 6x2:
Padron trucado precisou competir com modelos de trucado "cabrito" ao longo dos anos.
Foto: Victor Santos, 2020.
Os novos convencionais podem ser fabricados entre 9 e 15 metros de comprimento, este último atualmente apenas a Volvo produz, modelo B270F 6x2, um ônibus trucado com motorização dianteira para atender as exigências das empresas para um ônibus com maior capacidade, porém com menor custo aos trucados pesados (motor traseiro) ou articulados. 
Todos possuem a tecnologia Euro 5 PROCONVE P7 desde 2012, que limita a emissão de gases tóxicos provindos do uso de combustíveis fósseis.
Caio Millennium IV com chassi Volvo B250RLE:
Padron piso baixo é exigido pela SPTrans às empresas do subsistema estrutural.
Foto: Victor Santos, 2020.

Um exemplo talvez mais certo de como deve seguir um sistema de transporte é São Paulo, onde desde 2015 nenhuma empresa do subsistema estrutural pode adquirir ônibus com motorização dianteira, sendo exigida a aquisição de ônibus padron com piso baixo e motor traseiro. 
Embora divida opiniões entre os que preferem os motores dianteiros nos ônibus e os que se adequaram as novas realidades do transporte, a medida tornou o sistema de São Paulo um modelo a ser seguido nesse quesito, com mais da metade da frota operacional composta por ônibus padron piso baixo, seja ele padron , articulado ou biarticulado. 
Trólebus padron 12 metros em São Paulo.
Foto: Victor Santos, 2019.
Segundo o SPUrbanuss (sindicato das empresas de ônibus urbanos de São Paulo), a cidade possui 3.864 ônibus do tipo padron, entre padron toco e trucado, além dos 201 trólebus que também entram na categoria padron (toco e trucado). 
Embora a realidade de São Paulo seja muito distinta a de quase todas as demais cidades do país, um sistema de transporte precisa ser, acima de tudo, eficiente e confortável aos passageiros e operadores. O custo precisa sim ser considerado, mas outras questões importantes que o projeto do Padron alimentava deve estar sempre em prioridade.
Mascarello Granvia com chassi Volkswagen 17.260OD:
Embora mais modernos, os chassi com motor dianteiro ainda são
ônibus com motores derivados dos caminhões.
Foto: Victor Santos, 2020.
Por fim, o Padron mesmo com todos os itens que tanto foram estudados ficou para trás, junto com os modelos dos quais foram produzidos pensando nessas exigências. Hoje, ainda há vestígios do projeto nos modelos atuais, além das tecnologias e aperfeiçoamentos que foram feitas ao longo dos anos.
O conforto, qualidade, durabilidade e resistência estão sempre em segundo plano quando a questão do lucro e custo de operação são priorizados, enquanto os passageiros ainda precisaram viajar em “caminhões modernos para passageiros”. 
Caio Millennium IV com chassi BYD D9A:
Padron com tração 100% elétrica pode se tornar comum nos próximos anos.
Foto: Victor Santos, 2019.
Texto: Victor Santos.
Fontes
Livro "Ônibus - Uma história do transporte coletivo e do Desenvolvimento Urbano no Brasil", Waldemar Corrêa Stiel/ANTP Cultural (2001).
Lexicar Brasil: http://www.lexicarbrasil.com.br/padron/