Muito se discute até os dias atuais em como o projeto do antigo "Fura-Fila", hoje denominado Expresso Tiradentes, poderia ter trazido consigo modernidade, remodelação no sistema de transporte sobre pneus, e um transporte limpo com a utilização dos trólebus. O projeto, original de 1995, foi uma proposta do então prefeito Paulo Maluf em criar corredores exclusivos de ônibus, ou canaletas como eram conhecidos, em diversas regiões de São Paulo, e utilizando trólebus biarticulados e articulados com embarque ao nível do ônibus e cobrança antecipada da tarifa em estações.
O projeto em si trazia muitas inovações e foi chamado de VLP - Veículo Leve sobre Pneus, que seria algo semelhante ao VLT - Veículo Leve sobre Trilhos, porém usando ônibus no lugar de composições ferroviárias. Mas o que marcou o projeto foi a idealização de usar trólebus articulados e biarticulados na operação, este último nunca visto antes no país. Vamos conhecer a curta história de um modelo que não chegou a operar comercialmente, mas levanta grandes discussões até hoje, o protótipo do biarticulado trólebus que faria a operação no corredor.
A década de 1990 foi muito movimentada no transporte urbano por ônibus da capital paulista, sobretudo com a saída de muitas empresas tradicionais e o fim da estatal municipal CMTC, que deu lugar a sua sucessora SPTrans em 1995. No mesmo ano, a prefeitura de São Paulo, sob gestão do então prefeito Paulo Maluf, lançaria o projeto "Fura-Fila", uma rede de corredores exclusivos de ônibus operados por trólebus articulados e biarticulados. Inovador em muitos aspectos, o projeto somente saiu das pranchetas de projeto em 1997, com a eleição de Celso Pitta, sucessor de Paulo Maluf, para a prefeitura de São Paulo. Eram previstos muitos trechos do novo sistema, estimado em 125 quilômetros de corredores exclusivos com a operação dos trólebus articulados e biarticulados. A estimativa era que o primeiro trecho, entre Sacomã, zona sul, e o Parque Dom Pedro II, região central, fosse usado como um estudo e experiência para implementar as demais linhas.
Marcopolo VLP em testes nos arredores do Parque Dom Pedro II. Foto: Créditos à Jorge Françozo de Moraes. |
As obras do primeiro trecho, chamado de "Linha 1", contemplava a construção do elevado exclusivo para os ônibus, entre o Sacomã e a Praça Alberto Lion, e a construção de uma via exclusiva sobre o tampão do Rio Tamanduateí, entre Alberto Lion e o terminal Parque Dom Pedro II.
As obras se arrastaram tanto, que já nos anos 2000 a obra foi definitivamente paralisada, após atrasos, superfaturamentos e falta de uma gestão realmente preocupada com a mobilidade e sustentabilidade de um sistema de ônibus, algo que até os dias atuais acontece nas atuais gestões municipais. Com isso, as estruturas do fura fila foram abandonadas por anos, o que causou problemas urbanísticos ao longo das avenidas do Estado e Juntas Provisórias. Um dos problemas que também atrasaram o andamento das obras foi o fato de não terem previsto os impactos urbanísticos que o traçado em elevado traria a região por onde passaria, o que gerou mais atrasos as já demoradas obras.
Embora duramente criticado, o projeto sofreu o que conhecemos por "falta de planejamento e péssima gestão".
Embora duramente criticado, o projeto sofreu o que conhecemos por "falta de planejamento e péssima gestão".
Na gestão da prefeita Marta Suplicy, entre 2001 e 2004, a campanha de erradicar os trólebus da cidade custou mais um duro golpe ao projeto Fura-fila, que agora seria chamado de "Paulistão", e seria operado por veículos híbridos (diesel-elétricos), o que ocasionou na retirada de toda a infraestrutura dos trólebus já instalada no corredor. O projeto do Paulistão também não foi para frente e apenas os ônibus híbridos foram fabricados, que operaram no corredor, já na fase Expresso Tiradentes, até meados de 2013, enquanto os trólebus poderiam operar por cerca de 20 à 30 anos.
O corredor, após anos abandonado, foi inaugurado definitivamente em 08 de março de 2007, na gestão de José Serra, quase 20 anos após iniciarem as obras, agora com o nome de "Expresso Tiradentes" e com articulados e biarticulados (estes entraram no corredor em meados de 2010) movidos a diesel.
Protótipo construído em 1997 para o "Fura-Fila". Foto: Créditos à Jorge Françozo de Moraes. |
Mesmo nunca ter entrado em operação comercial, o Fura-fila contava com uma pequena frota de três trólebus para os testes, sobretudo para aperfeiçoar o sistema e avaliar características da futura operação. O trólebus mais conhecido por ter feito parte dessa pequena frota foi sem dúvidas o Marcopolo VLP, um protótipo de um trólebus biarticulado que foi fabricado justamente para operar no sistema projetado para o Fura Fila.
A Marcopolo, tradicional fabricante de carrocerias para ônibus rodoviários e urbanos, esteve a frente na construção do protótipo de 25 metros de comprimento e capacidade para cerca de 270 passageiros. Também participaram do projeto da construção do VLP a sueca Volvo, fornecendo o chassi biarticulado, e a Powertronics, fornecendo o sistema de tração.
Esquema de como seria os biarticulados do corredor. Figura retirada da internet. Fonte. |
O modelo contava com os mais modernos itens que se poderia encontrar em um ônibus urbano no país naquela época, itens esses que somente foram aparecer de fato na cidade já nos anos 2000, aliás, muitos dos itens incorporados nesse protótipo não são encontrados até hoje na frota da cidade. O modelo possuía os seguintes itens:
-Ar condicionado;
-Sistema para anúncios ao público, com sistema de som e painéis para mensagens;
-Tração IGBT desenvolvido pela Powertronics;
-Quatro portas por lado da carroceria sem degraus, permitindo embarque e desembarque ao nível da plataforma das estações;
-Câmeras de vigilância interna e externa;
-Guiagem eletrônica da direção, permitindo maiores velocidades comerciais e segurança na operação.
-Ar condicionado;
-Sistema para anúncios ao público, com sistema de som e painéis para mensagens;
-Tração IGBT desenvolvido pela Powertronics;
-Quatro portas por lado da carroceria sem degraus, permitindo embarque e desembarque ao nível da plataforma das estações;
-Câmeras de vigilância interna e externa;
-Guiagem eletrônica da direção, permitindo maiores velocidades comerciais e segurança na operação.
A guiagem dos trólebus sem dúvidas era o que mais chamava a atenção do projeto do trólebus, pois nunca havia cogitado esse tipo de sistema no Brasil, embora já era utilizado em países como Alemanha, Inglaterra e Austrália. Utilizando rodas instaladas na parte inferior dos ônibus, esse tipo de tecnologia ajuda na guiagem mais segura dos ônibus, o que permite que o motorista tenha mais controle dos veículos, aumentando a velocidade comercial, projetada para 80 km/h, e garantindo a segurança. Este tipo de sistema é chamado de O-bahn.
Trecho mostrando os "trilhos" nas laterais da pista para a guiagem dos trólebus. Note os postes de sustentação da rede aérea. Foto: Créditos à Jorge Françozo de Moraes. |
O projeto do biarticulado trólebus também trazia um desenho novo, design arrojado e semelhanças com os trens em algumas características, uma frontal que lembra muito os trens fabricados na época, com uma inclinação maior na parte dianteira para diminuir o arrasto do ar sobre o ônibus, além de um para-brisa maior para uma ampla visibilidade do motorista.
É importante lembrar que os ônibus biarticulados no Brasil ainda eram novidades, sendo que a primeira cidade possuir a operação comercial de ônibus desse tipo foi Curitiba, capital do Paraná, para aumentar a capacidade dos corredores exclusivos de ônibus da cidade em 1992. No caso dos trólebus, haviam apenas duas unidades de trólebus articulados em operação em São Paulo, ambas com carroceria da Marcopolo e que também foram usadas nos testes do fura fila. Então, trólebus biarticulado era quase uma revolução nos dois conceitos de ônibus: um biarticulado utilizando a tecnologia trólebus.
A construção do protótipo foi iniciada em 1997, tendo sido entregue e posteriormente exposto ao público em 1998, durante a ExpoBus daquele ano, chamando a atenção pelo design e conceitos inovadores para a época. Porém, a via exclusiva da primeira linha do sistema ainda não estava pronta para os testes, sendo assim, os primeiros testes com o protótipo foram feitos em uma pista construída exclusivamente para ele no Autódromo de Interlagos, com extensão de 1.500 metros.
Com o término parcial das obras do trecho em superfície, entre o terminal Parque Dom Pedro II e a Praça Alberto Lion, o biarticulado foi transferido para os primeiros testes na nova estrutura ainda nesse período, embora tenha voltado ao complexo de Interlagos algumas vezes no período de 1998 e 1999.
VLP realizando testes na pista no Autódromo de Interlagos. Foto: Créditos à Jorge Françozo de Moraes. |
Os testes seguiriam até setembro de 2000, quando o então prefeito Celso Pitta convidou a imprensa para os primeiros testes com passageiros, utilizando também os dois trólebus articulados da cidade, estes também pintados no que seria o padrão para os ônibus do fura fila. Já em outubro daquele mesmo ano, o prefeito retornou para abrir a visitação para o público geral conhecer o sistema, mas já em novembro, todos os testes e visitas foram canceladas e definitivamente fechadas, selando o destino do fura fila.
Não se sabe ao certo quantos biarticulados e articulados seriam fabricados para o fura-fila, mas estima-se que o número de unidades poderia ser grande já que se previa intervalos de 90 segundos entre um ônibus e outro, algo se se aproximaria de um sistema de metrô, como era previsto, e transportar entre 15 e 30 mil passageiros por hora/sentido. O que se sabe é que o projeto entrou para a lista dos projetos voltados ao transporte que foram cancelados pela descontinuidade política já conhecida pelos paulistas.
Os dois trólebus articulados emprestados para os testes foram devolvidos para as operadoras de São Paulo posteriormente ao fim dos testes em 2000, mas o destino do que seria o primeiro biarticulado trólebus foi, digamos, injusto.
Protótipo abandonado em meados de 2010. Foto: Márcio Bruxel (créditos na foto). Fonte: Ônibus Brasil |
Ele retornou para a Marcopolo, onde ficou em um pátio nos arredores apodrecendo, tendo sido registrado por diversos busólogos em um estado deplorável de conservação. Os últimos registros dele foram em 2011, e boatos que não foram apurados é de que ele foi desmanchado, após anos abandonado. Ele se tornou um simbolo de dinheiro público desperdiçado e um projeto que poderia ser referência à outras cidades.
Chamado de "trem sobre rodas", o VLP foi fruto de uma péssima administração, má gestão de projeto e descontinuidade, o corredor Expresso Tiradentes é duramente criticado por ser um sistema isolado, com pouco impacto na mobilidade da cidade, além de utilizar ônibus comuns movidos à diesel, o que o afasta da ideologia original de um transporte rápido e com menos impacto ambiental e seguro.
Embora muitos acreditam que a ideia do VLP era "uma canoa furada", é válido lembrar que todo projeto precisa fortemente de uma boa administração e um bom planejamento, algo incomum no Brasil. Com tantas inovações para a época, o VLP hoje se enquadraria como um verdadeiro BRT - Bus Rapid Transit, algo que o atual Expresso Tiradentes ainda deixa muito a desejar.
Texto: Victor SantosÔnibus articulado estacionado no terminal Sacomã. Foto: Victor Santos (autor). |
Referências: Tramz.com, Tróleibus Brasil, Plamurb.
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